Por Túlio Miranda
No Brasil, a única coisa mais instável do que o sistema tributário é a interpretação dos tribunais sobre ele. Muitas vezes, longe dos holofotes e sem alarde, a insegurança tributária avança em silêncio, talvez sem que seus próprios autores percebam o exato alcance do que estão decidindo.
No final de setembro, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento virtual e em um processo colateral, produziu uma das mais graves inflexões do contencioso tributário brasileiro. Nos embargos de declaração do ARE 1525254, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, decidiu-se que não cabe pedido de reconhecimento de direito à compensação tributária em mandado de segurança. Esse entendimento tem potencial para causar uma das maiores rupturas do contencioso tributário das últimas décadas, por, pelo menos, seis razões.
A primeira é que pode destruir uma construção jurisprudencial de longos anos. Desde a década de 90, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) – com base na Súmula 213 – pacificou que o mandado de segurança é meio hábil para reconhecer o direito à compensação de tributos indevidamente pagos, sem impor condenação à Fazenda Pública para devolver a quantia certa. O valor a ser compensado é apurado pelo próprio contribuinte, após o trânsito em julgado, e informado ao Fisco, a quem cabe fiscalizar o procedimento. Não se trata de efetivar a compensação em juízo, mas de declarar o direito ao encontro de contas.
Essa orientação foi confirmada em dois recursos repetitivos – o REsp 1111164/BA (2009) e o REsp 1715294/SP (2019) – e reafirmada, por unanimidade, no EREsp 1164452/MG (2021), ao reconhecer que o direito à compensação abrange indébitos inclusive anteriores à impetração, desde que não prescritos, sem gerar efeitos patrimoniais pretéritos.
A segunda razão é que a decisão confunde compensação com restituição, tratando aquela como uma forma de pagamento. O relator afirma que qualquer devolução de valores pela Fazenda – ainda que por compensação – estaria sujeita ao regime de precatórios. Mas compensar não é pagar; é deixar de recolher um valor em razão de crédito reconhecido. Não há saída de numerário dos cofres públicos. Ao impor o regime de precatórios, o Supremo subverte a lógica orçamentária e cria um obstáculo fictício à efetividade da compensação.
Essa contradição é ainda mais evidente porque, em maio deste ano, a mesma Turma – no ARE 1534650 AgR, de relatoria do ministro Edson Fachin – reconheceu expressamente que compensação e restituição são institutos distintos, afastando a aplicação do Tema 1.262.
A terceira razão é que o entendimento ampliará a duração do contencioso tributário. O mandado de segurança é, há décadas, o principal instrumento de reação a exigências ilegais, por oferecer rito célere, sem condenação em honorários de sucumbência, admitindo o reconhecimento do direito à compensação, cuja execução se dá pela via administrativa. Se prevalecer a nova orientação, o contribuinte que quiser reaver tributos pagos indevidamente terá de ajuizar ação de repetição de indébito – mais lenta, sujeita a sucumbência, custas, precatórios e anos de tramitação. O Judiciário, que até aqui se limitava a declarar o direito, passará a desempenhar o papel de apurador de créditos tributários.
A quarta razão é que um caso periférico pode se transformar em precedente de alcance sistêmico. O voto do relator, ao reinterpretar os Temas 831 e 1.262 da repercussão geral, pode redefinir, quase por acidente, o papel do mandado de segurança em todo o contencioso tributário. Uma decisão isolada pode se tornar – ironicamente – a mais disruptiva dos últimos tempos.
A quinta razão é que a decisão rompe o equilíbrio entre o STF e o STJ. Ao intervir em matéria nitidamente infraconstitucional – o alcance da Súmula 213 do STJ -, o Supremo invade o domínio do tribunal encarregado de uniformizar o direito federal. O resultado é um cenário de insegurança judicial institucionalizada, em que nenhuma jurisprudência é estável, nem mesmo as que resistiram a décadas de sedimentação no STJ.
A sexta e mais grave razão: se o precedente for interpretado literalmente, partindo-se da ideia de que a compensação se equipara à restituição administrativa e viola o regime de precatórios, qualquer compensação tributária fundada em decisão judicial transitada em julgado poderá ser invalidada. Isso implicaria uma inconstitucionalidade parcial do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996, que autoriza a compensação de créditos reconhecidos em juízo – ameaçando desconstituir todo o modelo legal de compensação e ampliando a repercussão do precedente muito além do que os próprios ministros talvez tenham percebido.
O argumento de que a decisão “preserva a ordem dos precatórios”, além de incorreto, expõe um problema mais profundo: a perda de credibilidade do sistema de precedentes. Súmulas, recursos repetitivos e embargos de divergência – criados para garantir estabilidade, coerência e previsibilidade – tornaram-se figuras retóricas de uma promessa não cumprida, esvaziando-se de força normativa e efetividade prática.
Espera-se que esse entendimento seja revisto, para que não assistamos ao definhamento do mandado de segurança e da compensação em matéria tributária. No fim, fica a sensação de que, no Brasil, a lei muda com o tempo – e a interpretação, com o vento.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/legislacao/coluna/supremo-aqui-jaz-a-compensacao-tributaria.ghtml